domingo, 31 de julho de 2011

Estado negligente, mulher desamparada

Matéria publicada no Diário do Litoral (04/07/2011) por Carlos Ratton

Quem nunca ouviu a seguinte frase: existem leis no Brasil. O problema é que elas não são cumpridas? A prova é que centenas de mulheres da Região Metropolitana da Baixada Santista estão voltando para casa do jeito que chegaram às delegacias: machucadas, psicologicamente abaladas e desiludidas com a Justiça.




É que a maioria da delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) - mantidas pela Secretaria Estadual de Segurança Pública e primeiros locais que as mulheres procuram para garantir integridade (física e mental) e direitos - não consegue executar com eficácia a Lei Maria da Penha. Há boa vontade por parte dos funcionários, mas falta muita coisa, principalmente estrutura e sensibilidade por parte do Estado.



O resultado desta falha é dramático. As mulheres têm que encarar o seu agressor e fingir que nada aconteceu, pois a reação do marido ou companheiro, em função da denúncia, pode ser ainda mais violenta. O pior, é que essa realidade deve atingir todos os municípios de São Paulo – o estado mais rico do País.



Segundo pessoas ligadas aos direitos das mulheres, o problemas são de fácil solução, bastando apenas que o Estado cumpra o seu papel de gestor. O que parece não vem ocorrendo desde da criação da lei, instituida em agosto de 2006, pelo Governo Federal.



Especialistas apontaram deficiências em pelo menos quatro cidades: Guarujá, São Vicente, Cubatão e Praia Grande. Nesses municípios, existem vários problemas envolvendo falta conhecimento técnico às funcionárias; efetivo nos plantões; infraestrutura nos prédios; local apropriado para coleta de material para exames; veículos para levar as vítimas ao Instituto Médico Legal (IML) e envolvimento com órgãos municipais.



Para se ter uma idéia, as mulheres que forem agredidas de sexta-feira à noite a domingo são discriminadas pelo Estado, pois as delegacias não funcionam nos finais de semana – período que mais acontecem agressões contra as mulheres. Para que o atendimento fosse 24 horas, era preciso que o Estado praticamente triplicasse o número de funcionários em cada DDM.



Além disso, faltam especialistas - fundamentais ao atendimento mais humanizado - como psicólogas e assistentes sociais. Nos IMLs, o ideal seria que uma médica fizesse o atendimento das mulheres vítimas de maus tratos. Isso porque muitas simplesmente ficam traumatizadas e, nas primeiras horas, não querem ver um homem por perto.



Em Guarujá, a situação é grave



“Guarujá tem mais de 300 mil habitantes e tinha uma delegacia de atendimento à mulher que foi fechada. O prédio foi abandonado em 2006 e fica no Jardim Boa Esperança. Hoje, a delegacia funciona precariamente, anexa à Delegacia Sede de Guarujá, onde não há sequer o cumprimento da Lei de Acessibilidade, pois as salas de atendimento ficam na parte superior, sem elevadores ou rampas” afirma a especialista em atendimento à mulher, Cláudia França.



Cláudia afirma que há poucas funcionárias para atender as mulheres e que somente este ano já foram mais de 60 casos de abuso sexual contra menores e mais de 300 de violência contra a mulher na conhecida Pérola do Atlântico



“A delegada teve que dividir o atendimento por tipo de crime. Não há na Delegacia da Mulher de Guarujá um veículo para levar as vítimas ao IML, conforme preconiza a lei”, finaliza, alertando que a prefeita Maria Antonieta de Brito teria planos para o prédio do Jardim Boa Esperança, que seria transformado em um centro de referência à saúde da mulher.

Apanha de novo



A advogada e ex-presidente do Conselho da Condição Feminina de Guarujá, Roseli Aparecida Costa Veiga de Morais, que há anos trabalha com a questão feminina, faz um apanhado das DDMs da Baixada. Ela afirma que os conselhos municipais de todo o Estado travam imensas batalhas para a implantação de políticas públicas para amenizar os sofrimento das mulheres.



“As delegacias não abrem nos finais de semana. A mulher agredida no sábado tem que voltar segunda-feira para fazer o boletim de ocorrência (BO). Até lá, ela apanhou de novo ou fez as pazes. E o caso é esquecido”, afirma Roseli.



Ela conta que as mulheres da Baixada reclamam muito do atendimento prestado nas DDMs. Como exemplo, ela cita o preechimento do BO, que é realizado de forma simplista e insatisfatória por parte das policiais, sem informações detalhadas da agressão, fundamentais na hora de entrar com uma ação na Justiça.

“Além disso, a autoridade policial deveria instrui-las a representar judicialmente o agressor no ato da denúncia e não dias ou meses depois”, alerta.



A advogada continua criticando o sistema: “outras mulheres vão ao IML de ônibus. Não sei se falta preparo técnico ou boa vontade”, afirma Roseli de Morais, enfatizando que, mesmo assim, houve uma melhoria no atendimento, em função da conscientização gradativa das mulheres.



Roseli ainda comenta que a DDM deveria ter uma assistente social e o IML uma médica. Ela resume a situação alertando que falta material humano, treinamento, acompanhamento e espaço adequado para receber e atender a mulher. “Falta sensibilidade por parte dos governos. Definitivamente, as DDMs não cumprem a Lei Maria da Penha”.



A delegada responsável pela DDM de Guarujá, Thelma Kássia da Silva, contesta os problemas levantados e afirma que a Lei Maria da Penha é cumprida em sua totalidade.



Ela explica que sua delegacia possui três escrivãs, duas carcereiras ajudando na realização de Bos, dois policiais para as ocorrências externas, uma guarda municipal cedida pela Prefeitura e duas viaturas.



Thelma da Silva enfatizou o esforço de sua equipe, que também atende crianças, adolescentes e idosas, e que criou um cartório só para atendimento da Lei Maria da Penha. Porém, salientou “a necessidade de aumentar a equipe para aprimorar o serviço”.



Em Cubatão, tem homem na linha



A coordenadora de Políticas Para as Mulheres de Cubatão, Roseli Maria de Oliveira, afirma que em sua cidade a situação é, no mínimo, esquisita, para não dizer contra a lei. “Na DDM é um escrivão que faz o primeiro atendimento. Não preciso dizer que isso constrange a mulher e causa um verdadeiro desestímulo. Além disso, as acomodações expõem as pessoas”, conta.



Apesar de afirmar que a prefeita Márcia Rosa está tentando mudar a situação, criando um órgão para amparar as mulheres agredidas, a coordenadora reclama da falta de funcionárias, de estrutura adequada e até de respeito para com as servidoras do próprio Estado.



“A delegada não é fixa da DDM. Ela trabalha em outras delegacias e já me confidenciou que está cansada . Além disso, as funcionárias pouco conhecem a lei. Muitas mulheres desistem de fazer o BO”, acredita.



Roseli conta que um levantamento feito em 2007 demonstrou que em Cubatão as mulheres sofrem nas mãos de homens violentos: “Foram mais de 1.300 casos. Isso dá uma média de quatro casos por dia. Além disso, os BOs não viram inquérito porque as funcionárias não orientam. E os agressores nunca são chamados”, afirma, dando a entender uma certa impunidade.



A reportagem esteve na DDM de Cubatão, mas não foi recebida pela delegada Leyner Anachi e muito menos pelo escrivão. Segundo uma funcionária, oito pessoas trabalham no local (apesar de não serem vistas).



A DDM é escura e possui acomodações precárias. Para se ter uma idéia, a delegacia possui móveis entulhados, apenas uma viatura e dois crânios de brinquedo fazem parte da decoração, dando um aspecto macabro e pouco acolhedor à unidade.



Praia Grande: há 17 anos do mesmo jeito



Em Praia Grande, o prédio da DDM – anexo à Delegacia Sede – está da mesma forma de quando foi inaugurado, em 1994: sem acessibilidade, mal iluminado, com escadarias altas e acomodações deprimentes.



Por volta do meio dia da última terça-feira, quando a reportagem esteve no local, uma carcereira é quem estava no plantão. Ela não teve como esconder a pilha de cerca de 500 ocorrências a serem despachadas, localizada a poucos metros de sua mesa.



As funcionárias não recebem treinamento. A delegada Rosemar Cardoso Fernandes e uma policial tiveram que sair e não puderam dar entrevista. Mas segundo apurado, a DDM possui apenas mais uma policial e usa a viatura emprestada pela sede.



São Vicente: Prefeitura paga o aluguel



“Não existe equipamento específico para atender as mulheres na Cidade. De janeiro a maio deste ano, foram registrados 900 casos de violência contra a mulher. Deste montante, 611 foram de violência doméstica e apenas 180 se tornaram inquéritos”, comenta a representante do Conselho da Mulher de São Vicente, Ana Paula Preto.



Assim como as demais cidades da região, Ana Paula afirma que a DDM vicentina também sofre com a falta de equipe e que não atende nos finais de semana. Ela acredita que todas essas deficiências justificam os números apresentados.



No local – um sobrado adaptado, sem identificação, sem acessibildade e pago pela Prefeitura - a reportagem pode comprovar o esforço da delegada Samanta Rihbani Conti e sua equipe (três escrivãs e três investigadoras) para prestar bom atendimento as cerca de 300 ocorrências mensais.



“Além do aluguel, a Prefeitura cede funcionárias e arruma vagas para amparar as mulheres agredidas em entidades assistenciais. A delegacia central também nos ajuda no atendimento. Estou pleiteando uma psicóloga e uma assistente social. Também existe um projeto de um novo prédio para a DDM. Mas estou aguardando aval do Estado”, afirma Samanta Conti.



Santos: estrutura em ordem, mas falta vaga



Em termos estruturais, Santos está bem à frente de suas vizinhas. A DDM santista, apesar de não possuir placa de identificação, foi recentemente inaugurada, possui acomodações amplas, bem iluminadas e até um elevador para portadores de necessidades especiais está sendo colocado.



A unidade possui duas delegadas – Deborah Peres Lázaro e Carla Racciopi Urso - seis investigadoras, cinco escrivãs, três viaturas e realiza cerca de 300 ocorrências por mês.



Porém, a cidade possui apenas quatro vagas para atender as mulheres amparadas pela Lei Maria da Penha. Quem confirma a informação é a defensora pública do Estado, Lisa Mortensen. “Isso é vergonhoso para Santos. As vezes, a mulher tem que esperar duas semanas para obter uma vaga. A situação é caótica e eu já cobrei providências dos órgãos públicos”, afirma a defensora.



Lisa Mortensen vai mais além. Ela disse que a falta de vagas é comum na Baixada, que esse problema prejudica a aplicação de Lei Maria da Penha em sua totalidade e que no bairro do Caruara, por exemplo, falta policiamento. “Sem um policial naquela área, como preservar a integridade da vítima e a captura do agressor em uma ocorrência”, argumenta.



Além de uma psicóloga e uma assistente social, a defensora afirma que em cada DDM deveria existir um defensor público de plantão. Lisa também acredita ser um absurdo o fechamento das DDMs nos finais de semana e alertu que a Defensoria Pública, que funciona na Avenida São Francisco , 261, em Santos, está à disposição das 8 às 17 horas. O telefone é 3221-5611.



Outras cidades



Mongaguá e Peruíbe também possuem delegacias de Defesa da Mulher, mas as cidades de Bertioga e Itanhaém não possuem uma unidade, apesar de necessária.



Veja o que diz a lei com relação ao atendimento pela autoridade policial:

I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;

V - ouvir o agressor e as testemunhas;

VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;

VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:

I - qualificação da ofendida e do agressor;

II - nome e idade dos dependentes;

III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.

§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.

§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.







Violência no Brasil



Pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc projeta uma chocante estatística: a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas violentamente no Brasil. E já foi pior: há 10 anos, eram oito as mulheres espancadas no mesmo intervalo.

Realizada em 25 Estados, a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado ouviu, em agosto do ano passado, 2.365 mulheres e 1.181 homens com mais de 15 anos. Aborda diversos temas e complementa estudo similar de 2001.

Mas a parte que salta aos olhos é, novamente, a da violência doméstica. A pequena diminuição do número de mulheres agredidas entre 2001 e 2010 pode ser atribuída, em parte, à Lei Maria da Penha.

Entre os pesquisados, 85% conhecem a lei e 80% aprovam a nova legislação. Mesmo entre os 11% que a criticam, a principal ressalva é ao fato de que a lei é insuficiente. (fonte: UOL)